HISTÓRIA UNIVERSAL DOS TERREMOTOS
2017 - 2018

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Em 1775, a cidade de Lisboa foi destruída após ter sofrido um terramoto, seguido por um tsunami e um incêndio. Este evento catastrófico teve um efeito profundo no país. Letícia Ramos parte deste evento histórico para produzir uma narrativa não-documental. A artista tem cultivado um interesse específico em “cozinhar” a fotografia, e desenvolveu várias câmeras protótipo. Consequentemente, há uma certa fisicalidade na experiência das imagens em seu trabalho. Esta experiência fotográfica mergulha-nos numa ideia do passado através do grão e da textura. Este cruzamento entre ciência e artesanato, entre conhecimento e experimentação, surge em várias de suas séries de obras. História universal dos terremotos (2016-17) não é um documento ou uma revisão histórica do que aconteceu em Lisboa; é uma história de ficção baseada em um evento que Ramos usa para tecer uma experiência própria. Historia universal de los terremotos é o projeto que ela criou para esta exposição e inclui não só uma série de fotografias, como também um livro de artista e uma escultura (devemos chamá-la cinético?), que está relacionado com a gaiola pombalina. Esta estrutura, a gaiola pombalina, foi desenvolvida em Lisboa como uma técnica de construção anti-sísmica após o terramoto.

Para esta série fotográfica Ramos utiliza um processo de fotografia estroboscópica em microfilme com o qual captura o movimento de objetos em queda, numa referência direta ao impacto do terremoto.

A fotografia estroboscópica tem sido usada principalmente no mundo científico e tornou-se amplamente conhecida através do legado de Edgerton. Ramos encontrou uma maneira de entrelaçar o natural com o místico, a força de um fenômeno geológico com a construção humana de um imaginário governado pelo irracional. El mago y el terremoto (2016) e Espectro do seísmo (2016), títulos de séries de imagens dentro deste projeto, refletem essa convergência com o esotérico. As imagens, de natureza abstrata, refletem a perda de foco que imaginamos em um evento deste tipo, onde tudo perde seus contornos acentuados e é abandonado ao seu destino natural. Essas imagens também nos levam ao campo da vanguarda, ao contrário da fotografia histórica. O fascínio pela estrutura da gaiola é expresso em uma série de estudos em que a artista analisa o movimento de uma folha de papel falhando, também usando a técnica estroboscópica.

Não é a primeira vez que Letícia Ramos trabalha numa área híbrida entre ciência, história e ficção. Cada um dos projetos é, por sua vez, um experimento. Ramos constrói todos os tipos de engenhocas e máquinas que vão ajudá-la a realizar o projeto no qual se encontra trabalhando. Em 2012 ela produziu o projeto Vostok. A partir do evento real da viagem de um submarino russo ao lago antártico do mesmo nome, ela desenvolveu um vídeo em que vemos o navio navegando pelas profundezas do lago. Como parte deste projeto, ela também produziu um trabalho sonoro e um livro de artista.

Essa referência à ciência e às fronteiras é algo que fascina Ramos. Trata-se de ver o trabalho científico como meio de gerar imagens significativas para a criação de arte; trata-se de descobrir um território novo e extremo no qual as linhas divisórias são apagadas. Ramos desenvolveu esta ideia de simular imagens científicas no mesmo período em que produziu o projeto Vostok, com toda uma série de fotografias que nos levaram a esta área, com títulos como Teleportation (2014) e Meteorite I (2014), embora na realidade careçam de significado científico e só façam sentido na esfera artística. Nesses trabalhos ela não só introduz a noção de simulação em sentido estrito, como também propõe a ideia de simular a utilidade num sentido ontológico. Juntamente com esses conceitos, a ideia de técnica fotográfica é um sentido ontológico. Juntamente com esses conceitos, a idéia de técnica fotográfica é um sentido ontológico. Juntamente com esses conceitos, a idéia de técnica fotográfica é um elemento intrínseco ao seu trabalho. Ramos construiu câmeras exclusivas feitas à mão, permitindo-lhe criar imagens diferenciadas pela noção de singularidade. Estas invenções de arqueologia tecnológica, o “Escafandro”, a máquina “ERBF”, o “Polar”, que ela desenvolveu entre 2007 e 2012, são dispositivos que ela usa para criar imagens únicas que de alguma forma nadam contra a corrente do mundo digital contemporâneo.

Álvaro Rodríguez Fominaya
Texto retirado do catálogo “ITINERARIOS XXIII”
2017


TERREMOTOS INDUZIDOS TAMBÉM SÃO IMPREVISÍVEIS

Na mitologia japonesa, o deus Kashima tem a incumbência de manter Namazu, o peixe gigante, preso em uma caverna de pedras nas profundezas da Terra.Quando Kashima baixa a guarda, o peixe escapa e o movimento de sua cauda causa terremotos pelo planeta. Esta é uma das histórias na coleção de Letícia Ramos, que vem investigando as causas e os efeitos – socioeconômicos, psicológicos e políticos – dos terremotos desde que foi premiada com a Beca de Creación Artística da Fundação Botín, em 2016. O ponto de partida de sua pesquisa é o terremoto de Lisboa em 1775. Tido como um dos mais fortes terremotos da história, o sismo teve um enorme impacto na sociedade portuguesa do século XVIII – e, consequentemente, também em suas colônias. A hecatombe – oterremoto veio acompanhado de um maremoto que levantou ondas de cerca de vinte metros de altura, além de uma série de incêndios – aconteceu na manhã do Dia de Todos os Santos, endossando as muitas interpretações místicas e religiosas do acontecido. O Marquês do Pombal, então primeiro ministro, encarregou-se da reconstrução da capital portuguesa. O nobre ergueu as novas estruturas da cidade em uma velocidade de fazer inveja aos construtores que hoje são responsáveis pelos controversos “retrofits” dessas mesmas edificações. Gerando revolta nos pagadores de impostos do outro lado do Atlântico, a empreitada foi essencialmente paga com o ouro provindo de Minas Gerais e envolveu uma quantidade monumental de madeira importada às pressas da colônia. As famosas“gaiolas pombalinas”, por exemplo, foram feitas em sua maioria com madeira de lei do Brasil.

Ramos parte desse evento traumático para produzir uma sequência de imagens estáticas e em movimento que resultam de experimentos fotográficos variados.Desde o começo de sua carreira, a artista alimenta um interesse específico por procedimentos e pela evolução histórica das técnicas da fotografia analógica, o que a leva a desenvolver com frequência aparatos e máquinas específicas para realizar seus projetos. “História Universal dos Terremotos” é o resultado da fusão entre o profundo conhecimento técnico da mídia e o interesse da artista pela narrativa – nesse caso, tanto a histórica quanto a ficcional. A narrativa é por natureza, uma ferramenta intuitiva para amenizar o efeito de mudanças drásticas: contamos histórias a nós mesmos e criamos personagens e alegorias para dar sentido ao intangível ou tornar mais tolerável a experiência da realidade.

O terremoto de Lisboa aconteceu em 1775 e a fotografia surgiu em 1835 (em algum lugar em meio à histórica discórdia sobre a sua autoria, dividida entre Talbot e Daguerre ). Foi justamente a falta de “provas fotográficas” que estimulou a artista a investigar os relatos da época – contados a partir da própria sensibilidade daqueles que se dispuseram a narrar e representar plasticamente o que viram – para criar a sua própria versão do acontecido. A maioria das fotografias expostas em “História Universal dos Terremotos” foi criada a partir de uma técnica de fotografia estroboscópica em microfilme que registra o movimento de objetos em queda, em uma analogia direta ao momento dos tremores. Ao optar por técnicas próprias do meio científico, Ramos transporta as experiências de um laboratório técnico para o fotográfico, criando, assim, um novo tipo de vocabulário visual.

Uma esfera corta um plano negro, perdendo gradualmente sua definição; seu deslocamento dilatado é um tanto melancólico, silencioso (O mago e o terremotoI, 2016). As imagens de sismos que estamos acostumados a ver nos noticiários não lembram em nada as abstrações de luz em movimento criadas por Ramos.Ao contrário da realidade crua das fotografias de destroços e da superexposição das vítimas de catástrofes naturais, as imagens da artista parecem imprimir o tempo do trauma. Elas emulam a percepção alterada por situações limite e parecem registrar o que acontece quando percebemos no corpo que nada é definitivo. Especialistas se apoiam em tecnologias como análises quantitativas e de probabilidade, simuladores e modelos tridimensionais para tentar prever os impactos do presente em um futuro próximo. No entanto, a visualização dessas pesquisas não produz muita coisa além de ansiedade no público leigo. Ainda nos falta vocabulário para transformar algoritmos em metáforas e analogias. As imagens de Ramos partilham do mesmo tipo de rigor metodológico empregado nos centros de pesquisa científica, mas sem a pretensão de explicar qualquer coisa. Suas simulações visuais fascinam por reiterarem o mistério e o grau de especulação que ainda residem na mais avançada das descobertas científicas. Ainda não existem explicações convincentes sobre o que motiva o movimento das placas tectônicas– talvez o cochilo involuntário de Kashima que deixa Namazu escapar. Diante disso, só nos resta estudar seus impactos e projetar possíveis medidas preventivas(como foi o caso das construções pombalinas) ou transformar fenômenos desse tipo em alegorias para o nosso grande desarranjo sociopolítico.

A lenda diz que Namazu só escapa quando há um grande nível de injustiça social. O terremoto nivela tudo e todos voltam ao grau zero diante da catástrofe. Em situações de calamidade, a eficiência e o lugar do Estado são colocados à prova, ao mesmo tempo que se revelam as redes de cooperação e solidariedade entre as pessoas. Joaquim José de Mendonça, escritor do livro que empresta o título à exposição, descreve o impacto do sismo de Lisboa: “... ao final, em poucos minutos,não restava grande coisa desta capital da qual acompanhamos o desenvolvimento durante seis séculos. A cidade que se vangloriava de ser a mais rica do Ocidente agora é como um deserto na Arábia”2. Immanuel Kant foi um entre os vários filósofos iluministas (Voltaire cita a catástrofe em Cândido, por exemplo) que se propuseram a tentar entender as possíveis razões da “reação furiosa” da natureza contra Lisboa. O alemão se valeu de uma argumentação geológica e moral para pensar a catástrofe, afastando-se, assim, do debate acerca da Providência Divina predominante no período. Com estas questões em mente, Ramos foi mais adiante em sua proposta de encenar a “ciência empírica ”. No Pivô, a artista executou o experimento proposto pelo filósofo em seu livro Escritos sobre o Terremoto de Lisboa, utilizando caixas de terra construídas com base na seguinte receita:

“Não é difícil para um investigador da Natureza simular os fenômenos. Peguemos vinte e cinco libras de limalha de ferro, noutras tantas de enxofre, e misture-mo-las com água vulgar. Em seguida, enterremos esta massa a um pé ou pé e meio de profundidade e calquemos bem a terra que a cobre. Decorridas algumas horas, poderemos observar a liberação de um fumo espesso, a terra estremecerá e chamas irromperão do solo” .

A partir da especulação de Kant para criar um filme ficcional, Ramos empurra a narrativa cientificista para além de seus limites. O “investigador da natureza”a que se refere Kant hoje está mais próximo do artista do que do cientista. O pensamento que gerou o experimento não explica a origem dos terremotos, mas encampou a disputa entre a religião e a ciência natural em um momento crucial da história do pensamento ocidental. E o que significa falar de terremotos – ou de imagens de terremotos – em uma exposição de arte no Brasil em 2018? Enquanto escrevo esse texto, recebo um alerta do jornal The Guardian no meu celular dizendo que um terremoto acaba de matar 98 pessoas em Bali . Abro o link e vejo um vídeo trêmulo feito com um celular de alguém que estava lá. O áudio abafado revela gritos e explosões. Respondo a minha pergunta com outra pergunta: por que o jornal inglês escolheu divulgar justamente essa imagem acompanhando o alerta por SMS? Talvez porque ela seja uma ilustração em “tempo real” do horror da catástrofe natural e, na mesma medida, também uma prova da eficiência da cobertura desse veículo. Eu estou a dezenas de milhares de quilômetros do epicentro do terremoto e, ainda assim, recebo involuntariamente a notícia segundos após o ocorrido. Na era da hiper-definição, a imagem amadora traz um senso de verdade e uma urgência diferentes da câmera profissional. Hito Steyerl cunhou otermo “poor image” para descrever imagens desse tipo. Para a artista, essas imagens degradadas e feitas às pressas têm um coeficiente de realidade e conduzem certa estética da objetividade que é sintomática do nosso tempo.

A “estética” da câmera trêmula tem sido cooptada pela mídia oficial – e, como não poderia deixar de ser, abre espaço para situações e cenários induzidos. A única coisa que me faz acreditar que esse vídeo de fato foi feito por alguém em meio ao terremoto em Bali é o logotipo do jornal inglês no canto da tela. Mas ele poderia ter sido feito no chuveiro da minha casa, assim como a viagem do homem à Lua pode ter sido encenada em uma maquete similar às de Leticia Ramos.As complexas imagens analógicas de Ramos não ecoam o conceito de Steyerl. Ao contrário das imagens a que se refere a artista alemã – que seriam como um subproduto digital e frenético da busca pelo presente absoluto no capitalismo avançado –, os experimentos fotográficos de Ramos insistem na ideia de que há algo importante nas imagens que demoram, que não falam por si. Elas não são evidência ou sintoma de nada. Permanecem deliberadamente como uma questão em aberto. As imagens de Ramos são elas próprias manipulações premeditadas, o que, de certa forma, torna-as imunes às reconfigurações conceituais a que as imagens em circulação são frequentemente submetidas.

A investigação histórico-científico-ficcional de Ramos segue com a instalação Sismógrafo (2018). Ao transformar um projetor 16mm em um arremedo de sismógrafo, a artista se propõe a medir a vibração do edifício Copan e projetá-la simultaneamente. A ponta seca que risca o negativo exposto em tempo real supostamente revela a vulnerabilidade do edifício moderno – ou quiçá de todas as estruturas que julgamos estanques. E o que isso quer dizer, em termos sismológicos? Absolutamente nada. Essa nova máquina cinematográfica segue o processo que Ramos vem adotando há anos: um fenômeno, um evento histórico ou uma notícia de jornal são o ponto de partida para longos e abrangentes projetos de pesquisa artística. Ainda hoje pensamos sobre o impacto do terremoto de Lisboa,entendemos o quanto ele afetou a relação do país com o Brasil, sabemos também que seus efeitos impulsionaram o pensamento iluminista e somos herdeiros diretos de técnicas de construção civil e da pesquisa geológica desse tempo. Mas, apesar de tudo, ainda não é possível prever um terremoto. Isso posto, estamos sempre potencialmente na iminência de um. O trabalho de Leticia Ramos habita um lugar entre a ciência, a história, a narrativa ficcional e (por que não?) a mágica, lugar este que só é acessível à arte. Seus projetos em aberto olham atentamente para os efeitos do passado sem se preocupar em prever o futuro. Essa artista-inventora nos chama a atenção para o fato de que uma imagem é sempre o resultado da fusão de algo que está no mundo com a nossa capacidade de interpretar e transformar o que vemos.

Fernanda Brenner
2018


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